terça-feira, 4 de novembro de 2008

De arma em punho

Certa ocasião, eu disse aqui, neste cantinho, que minha primeira profissão foi a de ”seleiro”, o que confirmo. Fabricava selas para montaria e outros artefatos de couro.

Fui, ainda, jogador de futebol, sempre no time principal: nunca joguei no cascudo, acho até que eu era bom de bola. (Aqui entre nós: a bola era minha! Outra coisa: fui um dos fundadores do time do Minas Esporte Clube, de Nova Era!).

Minha carreira rumo à seleção do Brasil foi interrompida por uma contusão não muito grave. Tive de me afastar do gramado como jogador, mas a saudade me fez voltar ao campo, dessa vez como juiz de futebol. Modéstia à parte, eu apitava muito bem!

Sempre havia uma partida para apitar, aqui em Nova Era ou em alguma cidade vizinha, como João Monlevade, São Domingos do Prata, Itabira, etc.

Certo domingo, solicitaram-me que apitasse o maior clássico de nossa cidade, entre os dois rivais: Comercial F.C. x Minas E. C., no campo do Comercial. A cidade se dividia entre os alvinegros comercialinos e os vermelhos, do Minas. Era, realmente, um clássico que mobilizava toda a população. O jogo seria no campo do Comercial. Consideravam-me, mesmo, um ótimo árbitro, pois todos sabiam que eu jogara no Minas, tendo sido um de seus fundadores. Entretanto, confiaram na minha imparcialidade.

Já estávamos no segundo tempo. Tudo ia bem, apesar do calor da disputa. “Meu time”, ou melhor, o time do Minas, perdia de 3 a 2, quando, aos 35 minutos, tive de assinalar uma penalidade máxima contra o Comercial. É claro que os jogadores do time da casa correram em minha direção, protestando contra a marcação, gesticulando e segurando a bola. E eu, ali, no meio, firme...

Foi quando o goleiro Dedé, do Comercial, colocou-se de braços abertos à frente de seus colegas, gritando:

- Foi pênalti, sim! Eu entrei no Zé Neves para quebrar mesmo! Deixem cobrar que eu garanto: vou fazer a maior defesa!

Diante da confissão do próprio colega, não houve mais protestos.

O pênalti é batido, o jogo empatado. Mais uns 10 minutos e a partida é encerrada sem outros incidentes.

Naquela época, já era noivo da Aparecida, cuja residência ficava muito próxima do estádio Israel Pinheiro, do Comercial.

À noite daquele mesmo domingo, no trajeto para sua casa, escutei vozes vindo de um canto escuro – estávamos em 1947, a luz elétrica era de péssima qualidade – até que vislumbrei uns quatro rapazes que começaram a cantar:

- “Rato, rato, rato,

por que motivo tu roeste meu baú?

Rato, rato, rato...”

Senti que era um insulto e uma provocação. Mas segui caminho.

Pois a cena se repetiu nas noites seguintes: era eu passar e a cantoria principiava:

- “Rato, rato, rato,

por que motivo tu roeste meu baú?

Rato, rato, rato...”

Voltemos à selaria, onde exercia meu ofício:

Além de arreios para montaria em animais, eu fabricava outros artigos de couro, para pronta entrega e encomendas.

Fabricava coldres (capa) para canivetes, facas, revólveres, inclusive rifles, de alguns caçadores.

Pois bem: certo dia, o meu amigo e freguês, Sebastião José Pinheiro, levou-me um revólver muito bonito, de cabo de marfim com pontinhos dourados do tamanho de uma cabeça de alfinete, para fazer uma capa, ou coldre. Antes de me entregá-lo, como medida de segurança, o Sebastião retirou as balas do tambor e as colocou em seu bolso, sem conferir. Após escolher a cor do couro, resolveu demonstrar como funcionava bem o gatilho e o cão de sua arma, tudo muito bem sincronizado - nós dois, um de frente para o outro. O Sebastião pressiona o gatilho apontando a arma em minha direção. O tambor começa a girar, o cão vai subindo, subindo... de repente, o amigo murmurou:

- Meu Deus! quase o matei, Soié. Tem uma bala no tambor!

Depositou cuidadosamente o revolver sobre a mesa, e desmontou, como que desmaiado, na cadeira que lhe ofereci.

Uma colher de água em sua boca e uma vigorosa massagem em seu pulso o reanimaram quase imediatamente.

Escolheu o couro, acertamos o preço e lhe confirmei que poderia procurar a encomenda logo mais, no fim do dia.

Lá pelas 17 horas, fui ao armarinho do David M. Guerra, grande admirador e colecionador de armas de fogo, a fim de lhe mostrar o lindo revólver. Ao entrar em seu estabelecimento, percebi, junto ao balcão, um dos “seresteiros” das últimas noites. Com calma, desfiz o embrulho, exibindo ao David a obra prima. O rapaz, lá, espiando com o rabo dos olhos. Depois de bem examinada, o David perguntou:

- Esta arma é sua? Você quer vender, Soié?

Em voz alta, respondi:

- É minha, sim, mas não está à venda.

E acrescentei:

- A partir de hoje, estarei sempre com ela na cintura, pois tem gente que está me insultando quando vou à casa da Aparecida. Qualquer hora dessas, vou disparar tiros em direção aos safados, escondidos que ficam no meio da escuridão! Até amanhã, David.

Virei-me para o moço que espiava junto ao balcão e repeti:

- Até amanhã, meu caro.

Nessa mesma tarde, entreguei o revólver e seu coldre ao Sebastião.

Continuei a visitar minha noiva, como fazia todas as noites. Já não era molestado por ninguém, muito menos pelos jovens “seresteiros”. Até hoje!


Agora, se querem saber: Nunca, jamais, em tempo algum, andei armado!...